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21
fev
2014

O fenômeno "da bebê"

O FENÔMENO “DA BEBÊ”

Margareth dos Santos de Jesus[i]


Há bastante tempo, observa-se o crescimento desse “fenômeno”, sempre se pensando em escrever sobre ele. Agora, que “a coisa” ficou séria mesmo (a variação o bebê/a bebê está mais presente na oralidade dos falantes de Língua Portuguesa no Brasil), pensa-se que seja o melhor momento de manifestação acerca desse fenômeno tão curioso, como o é todo fenômeno linguístico.

Quem nunca ouviu ou até mesmo se percebeu falando “a bebê”? Para as pessoas mais jovens, já é algo comum. E, certamente, eles devem estar se perguntando: o que há de errado com isso? Mas, para as pessoas com um pouco mais de idade, soa estranho e, equivocadamente, algumas vezes, é classificado como “errado”.

Acredita-se que, antes de falar sobre algo, é importante pesquisar sobre as suas origens, buscando entendê-las melhor. Dessa forma, buscou-se o Dicionário Etimológico de CUNHA[ii], onde foi encontrada a seguinte definição para o vocábulo bebê:

sm. “nenê, criancinha” 1899. Do fr. Bebê, do antrop. Bebê, nome de um anão célebre (1739-1764) da corte Estanislau Leczynski; para a sua difusão, contribuiu o ingl. baby, também de origem francesa. O voc. e caráter onomatopaico provém da literatura infantil.

Assim, observa-se que, em suas origens, a palavra bebê era masculina; visto que ela surgiu como um antropônimo masculino, que, em palavras bastante simples, pode ser definido como um substantivo comum que surge a partir de um substantivo próprio.

Substantivos antropônimos se aplicam às pessoas que, em geral, têm prenome (nome próprio individual) e sobrenome ou apelido (que situa melhor o indivíduo em função da sua proveniência geográfica) [Frei Henrique de Coimbra], da sua profissão [Caeiro], da sua filiação (patronímico) [Soares, filho de Soeiro], de uma qualidade física ou moral [Diogo Leão], de uma circunstância de nascimento [Neto].[iii]

Sabendo-se que a palavra bebê pertence à classe dos substantivos (Isso na grande maioria de seus usos, pois se tem ciência que todas as palavras de nossa língua só põem e devem ser analisadas dentro de um contexto, uma vez que sua localização na oração e os elementos que a cercam podem fazer com que surjam variações de sua classe e/ou função), buscou-se, em algumas gramáticas, um breve estudo sobre as definições e abordagens feitas sobre essa classe de palavras.

Primeiramente, essa busca foi feita em gramáticas normativas “comuns”, comuns no sentido de serem comumente usadas no ambiente escolar. Como o que interessa aqui é a questão da flexão de gênero do substantivo, todas as leituras feitas restringiram-se a esse aspectos, na intenção de ir direto ao ponto em questão.

Douglas Tufano[iv] coloca o substantivo como sendo “a palavra que usamos para designar seres, coisas, ideias”[v]. Quanto à flexão do substantivo, ele fala sobre a divisão deles em biformes e uniformes. Definindo os biformes como os que “apresentam um forma para cada gênero”[vi] e os uniformes como aqueles que “apresentam a mesma forma no masculino e no feminino”[vii]. Os substantivos uniformes subrecomuns aparecem como os que possuem apenas um gênero, sendo ele masculino ou feminino, para referirem-se a substantivos relativos a ambos os sexos. Para exemplificar sua definição, são mostrados os substantivos: a criança (menino ou menina), a testemunha (homem ou mulher), o cônjuge (homem ou mulher).

Benedicta e Garcia[viii], também com uma definição “simples”, conceituam o substantivo como a palavra usada para designar e nomear seres e objetos em geral.

Os substantivos uniformes sobrecomuns são apontados como portadores de um único gênero gramatical para designar pessoas de qualquer sexo. Como exemplo, são apresentadas as palavras: o carrasco, o cônjuge, a criatura, a criança, a pessoa, a testemunha, a vítima, o indivíduo, o verdugo, o algoz, o apóstolo.

Elas afiram ainda que “quando há necessidade de especificar o sexo, pode-se dizer, por exemplo, o cônjuge feminino”[ix].

Já Ernani Terra é um pouco mais “profundo” em sua definição de substantivo colocando-o como a “palavra variável em gênero, número e grau que dá nome aos seres em geral”[x]. Ele vai além, afirmando que:

São, portanto, substantivos:
ü  Os nomes de coisas, pessoas, animais e lugares.
livro, cadeira, cachorra, Mônica, Ricardo, Lisboa, Bolívia;
ü  Os nomes de ações, estados ou qualidades, tomados como seres.
trabalho, corrida, tristeza, beleza, altura.
Qualquer palavra pode ser substantivada. Para tanto, basta precedê-la e um artigo.
O não é uma palavra cruel. (advérbio substantivado).
O amar e o odiar não conhecem limites. (verbos substantivados).[xi]

Sobre a flexão de gênero, Terra diz que os substantivos uniformes sobrecomuns designam pessoas e que neles a diferença de gênero não é especificada por artigos nem nenhum outro determinante; ficando essa especificação a cargo do emprego das expressões “sexo masculino” ou “sexo feminino” (a criança, o cônjuge, a pessoa, a criatura). ex: a criança (do sexo masculino ou do sexo feminino), o cônjuge (do sexo masculino ou do sexo feminino).

Até aqui se falou sobre gramáticas de uso escolar. Um estudo em uma gramática mais complexa (Moderna Gramática Portuguesa) nos dá uma melhor visão do assunto em questão.

Dos conceitos apresentados aqui, Bechara é quem traz uma definição mais abrangente, mostrando o substantivo como:

... a classe de lexema que se caracteriza por significar o que convencionalmente chamamos de objetos substantivos, isto é, em primeiro lugar, substâncias (homem, mulher, casa, livro) e, em segundo lugar, quaisquer outros objetos meramente apreendidos como substâncias, quais sejam qualidade (bondade, brancura), estados (saúde, doença), processos (chegada, entrega, aceitação).[xii]

Como os autores anteriormente citados, Bechara reafirma a existência dos gêneros masculino e feminino, dizendo que o uso do artigo é um determinante para que o substantivo possa ser classificado como um ou como o outro (o linho, o sol, o raio, a flor, a casa, a mosca). Apesar de não citar o nome sobrecomum, ele não deixa de abordar o assunto.

Quando não ocorre nenhum destes tipos de manifestação formal, ou o substantivo, com o seu gênero gramatical, se mostra indiferente à designação do sexo (a criança, a pessoa, o cônjuge, a formiga, o tatu) ou, ainda indiferente pela forma, se acompanhada de adjuntos (artigos, adjetivos, pronomes, numerais) com moção de gênero para indicar o sexo (o artista, a artista, bom estudante, boa estudante).[xiii]

E, usando o termo sobrecomum, Evanildo Bechara diz que eles são:

... aplicados a pessoas, cuja referência a homem ou a mulher só se depreende pela referência anafórica do contexto: o algoz, o carrasco, o cônjuge.[xiv]

Mario Perini, em sua Gramática Descritiva do Português, traz o sujeito como “o termo da oração que está em relação de concordância com o NdP”.[xv]

A intenção aqui é apenas dar início a uma reflexão sobre o assunto, com o objetivo de aprofundá-la em momento mais oportuno, contando com outras fontes e até dados concretos. Portanto, justifica-se, nesse momento, uma fundamentação tão “básica”.

É de conhecimento geral que a língua só existe por causa do falante. É ele, com seus usos, que determina as transformações em uma língua; transformações essas que podem ser aceitas ou não.

E foram os falantes que decidiram (talvez até inconscientemente) transformar o substantivo sobrecomum bebê (o bebê masculino/o bebê feminino) em substantivo comum de dois gêneros (o bebê/a bebê).

Sabe-se que, com relação à nossa língua, não se usa mais as palavras “certo” nem “errado”. A contemporaneidade trouxe consigo a possibilidade de uso e aceitação de maneiras (palavras, expressões) em desacordo com as regras da gramática e o reconhecimento da questão das Variações e Mudanças Linguísticas.

Entende-se aqui que o “fenômeno a bebê” é um típico caso de variação que já se encontra bastante avançado, haja vista que os meios de comunicação (que exercem grande influência sobre os falantes) está utilizando-se dessa forma, conquistando, cada vez mais, adeptos (novos usuários).

O mundo muda, as pessoas mudam, as línguas mudam. O que acontece com o bebê/”a bebê” é um reflexo da mudança causada pelos próprios falantes devido ao uso que fazem da língua. Essa variação é usada por várias camadas sociais (pessoas de localidades, níveis culturais e sociais diferentes). Por isso, esse uso não está sendo estereotipado nem discriminado.

Algo semelhante aconteceu com a palavra tapa, que de masculino (o tapa) estava/está sendo usada como feminino (a tapa). A diferença é que apenas pessoas sem escolaridade (ou com baixa escolaridade) faziam/fazem uso dessa forma como feminino. Assim, ela é discriminatória e não alcançou os mesmos patamares de uso “da bebê”.

Ainda em Bechara, encontra-se uma referência bastante pertinente sobre a mudança de gênero:

Aproximações semânticas entre palavras (sinônimos, antônimos), a influência da terminação, o contexto léxico em que a palavra funciona, e a própria fantasia que moldura o universo do falante, tudo isso representa alguns dos fatores que determinam a mudança do gênero gramatical dos substantivos. Na variedade temporal da língua, do português antigo ao contemporâneo, muitos substantivos passaram a ter gêneros diferentes, alguns sem deixar vestígios, outros como mar, hoje, masculino, onde o antigo gênero continua presente em preamar (prea = plena, cheia) e baixa-mar. Já foram femininos fim, planeta, cometa, mapa, tigre, fantasma, entre muitos outros; já foram usados como masculino: árvore, tribo, catástrofe, hipérbole, linguagem, linhagem.[xvi]

Apesar de suas diferenciações conceituais, todas as gramáticas citadas concordam com a existência de um tipo de substantivo que pertence exclusivamente ao gênero masculino ou feminino, fazendo diferenciação ao termo a que se refere através dos elementos que poder lhe acompanhar. Crê-se que essa questão já ficou bastante clara com os exemplos e conceitos apresentados.

Apesar de a palavra bebê não ter sido citada como exemplo em nenhuma das gramáticas estudadas, também é notório, com a observação dos exemplos, que ela pertence “normativamente” ao grupo dos substantivos sobrecomuns, mesmo que a oralidade a esteja tratando e usando como pertencente a outro grupo (comum de dois gêneros).

Afinal, isso é bom ou ruim?

Não se pensa sobre isso. Não se pretende atribuir adjetivos a esse uso. O objetivo é chamar a atenção para esse processo de variação (que, não se pode afirmar, mas, tudo indica, resultará em mudança), principalmente para essa geração que já encontrou essa forma como vigente e que não tem conhecimento de que nem sempre foi assim.

Independente de essa variação realmente virar mudança ou não está o fato de que tudo o que está acontecendo é consequência do desejo do falante. É ele (repete-se), que através do uso que faz, determina “os rumos” a serem seguidos pela língua. O importante é que variando apenas ou mudando definitivamente não ocorrerão grandes implicações; já que quem usa será o responsável pela escolha.


Referências:

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. Ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

BENEDICTA, Aparecida Costa dos Reis; GARCIA, Maria Cecília. Minimaual Compacto de Gramática: teoria e prática. 2. Ed. revi. e atual. São Paulo: Rideel, [?].

CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 4. ed. Revista pela Nova Ortografia. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.

TERRA, Ernani. Minigramática. 8. ed. São Paulo: Scipione, 2011.

TUFANO, Douglas. Estudos de Língua Portuguesa. São Paulo: Moderna, 1996.

PERINI, Mario Alberto. Gramática Descritiva do Português. 4. ed. São Paulo: Ática, 2009.




[i] Mestre em Linguística Histórica, Especialista em Estudos Linguísticos e Literários, Licenciada em Letras Vernáculas com Inglês, Bacharel em Língua Inglesa e Bacharel Comunicação Social (Relações Públicas).
[ii] CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 4. ed. Revista pela Nova Ortografia. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010, p. 84.
[iii] BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. Ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005, p. 113.
[iv] TUFANO, Douglas. Estudos de Língua Portuguesa. São Paulo: Moderna, 1996, p. 46.
[v] TUFANO, p. 46.
[vi] TUFANO, p. 48.
[vii]TUFANO, p. 49.
[viii] BENEDICTA, Aparecida Costa dos Reis; GARCIA, Maria Cecília. Minimaual Compacto de Gramática: teoria e prática. 2. ed. revi. e atual. São Paulo: Rideel, [?].
[ix] BENEDICTA e GARCIA, p. 109.
[x] TERRA, Ernani. Minigramática. 8. ed. São Paulo: Scipione, 2011, p. 74.
[xi] TERRA, p. 74.
[xii] BECHARA, p. 112.
[xiii] BECHARA, p. 113.
[xiv] BECHARA, p. 113.
[xv] PERINI, Mario Alberto. Gramática Descritiva do Português. 4. Ed. São Paulo: Ática, 2009, p. 77.
[xvi] ALI, Manuel Said. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, [1931]. Apud BECHARA, p. 113 – 114.

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