O FENÔMENO “DA BEBÊ”
Margareth dos Santos de Jesus[i]
Há bastante tempo, observa-se o crescimento desse “fenômeno”,
sempre se pensando em escrever sobre ele. Agora, que “a coisa” ficou séria
mesmo (a variação o bebê/a bebê está mais presente na oralidade dos falantes de
Língua Portuguesa no Brasil), pensa-se que seja o melhor momento de manifestação
acerca desse fenômeno tão curioso, como o é todo fenômeno linguístico.
Quem nunca ouviu ou até mesmo se percebeu falando “a
bebê”? Para as pessoas mais jovens, já é algo comum. E, certamente, eles devem
estar se perguntando: o que há de errado com isso? Mas, para as pessoas com um
pouco mais de idade, soa estranho e, equivocadamente, algumas vezes, é
classificado como “errado”.
Acredita-se que, antes de falar sobre algo, é
importante pesquisar sobre as suas origens, buscando entendê-las melhor. Dessa
forma, buscou-se o Dicionário Etimológico de CUNHA[ii], onde foi encontrada a
seguinte definição para o vocábulo bebê:
sm. “nenê, criancinha” 1899. Do fr. Bebê,
do antrop. Bebê, nome de um anão célebre (1739-1764) da corte Estanislau
Leczynski; para a sua difusão, contribuiu o ingl. baby, também de origem
francesa. O voc. e caráter onomatopaico provém da literatura infantil.
Assim, observa-se que, em suas origens, a palavra bebê
era masculina; visto que ela surgiu como um antropônimo masculino, que, em
palavras bastante simples, pode ser definido como um substantivo comum que
surge a partir de um substantivo próprio.
Substantivos antropônimos se aplicam às
pessoas que, em geral, têm prenome (nome próprio individual) e sobrenome ou
apelido (que situa melhor o indivíduo em função da sua proveniência geográfica)
[Frei Henrique de Coimbra], da sua profissão [Caeiro], da sua filiação
(patronímico) [Soares, filho de Soeiro], de uma qualidade física ou moral
[Diogo Leão], de uma circunstância de nascimento [Neto].[iii]
Sabendo-se que a palavra bebê pertence à classe dos
substantivos (Isso na grande maioria de seus usos, pois se tem ciência que
todas as palavras de nossa língua só põem e devem ser analisadas dentro de um
contexto, uma vez que sua localização na oração e os elementos que a cercam
podem fazer com que surjam variações de sua classe e/ou função), buscou-se, em
algumas gramáticas, um breve estudo sobre as definições e abordagens feitas
sobre essa classe de palavras.
Primeiramente, essa busca foi feita em gramáticas
normativas “comuns”, comuns no sentido de serem comumente usadas no ambiente
escolar. Como o que interessa aqui é a questão da flexão de gênero do substantivo,
todas as leituras feitas restringiram-se a esse aspectos, na intenção de ir
direto ao ponto em questão.
Douglas Tufano[iv] coloca o substantivo como
sendo “a palavra que usamos para designar seres, coisas, ideias”[v]. Quanto à flexão do
substantivo, ele fala sobre a divisão deles em biformes e uniformes.
Definindo os biformes como os que “apresentam um forma para cada gênero”[vi] e os uniformes como
aqueles que “apresentam a mesma forma no masculino e no feminino”[vii]. Os substantivos
uniformes subrecomuns aparecem como os que possuem apenas um gênero, sendo ele
masculino ou feminino, para referirem-se a substantivos relativos a ambos os
sexos. Para exemplificar sua definição, são mostrados os substantivos: a
criança (menino ou menina), a testemunha (homem ou mulher), o cônjuge (homem ou
mulher).
Benedicta e Garcia[viii], também com uma
definição “simples”, conceituam o substantivo como a palavra usada para
designar e nomear seres e objetos em geral.
Os substantivos uniformes sobrecomuns são apontados
como portadores de um único gênero gramatical para designar pessoas de qualquer
sexo. Como exemplo, são apresentadas as palavras: o carrasco, o cônjuge, a
criatura, a criança, a pessoa, a testemunha, a vítima, o indivíduo, o verdugo,
o algoz, o apóstolo.
Elas afiram ainda que “quando há necessidade de
especificar o sexo, pode-se dizer, por exemplo, o cônjuge feminino”[ix].
Já Ernani Terra é um pouco mais “profundo” em sua
definição de substantivo colocando-o como a “palavra variável em gênero, número
e grau que dá nome aos seres em geral”[x]. Ele vai além, afirmando
que:
São, portanto, substantivos:
ü Os nomes de
coisas, pessoas, animais e lugares.
livro, cadeira,
cachorra, Mônica, Ricardo, Lisboa, Bolívia;
ü Os nomes de ações,
estados ou qualidades, tomados como seres.
trabalho, corrida,
tristeza, beleza, altura.
Qualquer palavra pode ser substantivada.
Para tanto, basta precedê-la e um artigo.
O
não é uma palavra cruel. (advérbio substantivado).
O amar
e o odiar não conhecem limites.
(verbos substantivados).[xi]
Sobre a flexão de gênero, Terra diz que os
substantivos uniformes sobrecomuns designam pessoas e que neles a diferença de
gênero não é especificada por artigos nem nenhum outro determinante; ficando
essa especificação a cargo do emprego das expressões “sexo masculino” ou “sexo
feminino” (a criança, o cônjuge, a pessoa, a criatura). ex: a criança (do sexo
masculino ou do sexo feminino), o cônjuge (do sexo masculino ou do sexo
feminino).
Até aqui se falou sobre gramáticas de uso escolar. Um
estudo em uma gramática mais complexa (Moderna Gramática Portuguesa) nos dá uma
melhor visão do assunto em questão.
Dos conceitos apresentados aqui, Bechara é quem traz
uma definição mais abrangente, mostrando o substantivo como:
... a classe de lexema que se caracteriza
por significar o que convencionalmente chamamos de objetos substantivos, isto
é, em primeiro lugar, substâncias (homem, mulher, casa, livro) e, em segundo
lugar, quaisquer outros objetos meramente apreendidos como substâncias, quais
sejam qualidade (bondade, brancura), estados (saúde, doença), processos
(chegada, entrega, aceitação).[xii]
Como os autores anteriormente citados, Bechara reafirma
a existência dos gêneros masculino e feminino, dizendo que o uso do artigo é um
determinante para que o substantivo possa ser classificado como um ou como o
outro (o linho, o sol, o raio, a flor, a casa, a mosca). Apesar de não citar o
nome sobrecomum, ele não deixa de abordar o assunto.
Quando não ocorre nenhum destes tipos de
manifestação formal, ou o substantivo, com o seu gênero gramatical, se mostra
indiferente à designação do sexo (a criança, a pessoa, o cônjuge, a formiga, o
tatu) ou, ainda indiferente pela forma, se acompanhada de adjuntos (artigos,
adjetivos, pronomes, numerais) com moção de gênero para indicar o sexo (o
artista, a artista, bom estudante, boa estudante).[xiii]
E, usando o termo sobrecomum, Evanildo Bechara diz que
eles são:
... aplicados a pessoas, cuja referência a
homem ou a mulher só se depreende pela referência anafórica do contexto: o
algoz, o carrasco, o cônjuge.[xiv]
Mario Perini, em sua Gramática Descritiva do
Português, traz o sujeito como “o termo da oração que está em relação de
concordância com o NdP”.[xv]
A intenção aqui é apenas dar início a uma reflexão
sobre o assunto, com o objetivo de aprofundá-la em momento mais oportuno, contando com outras
fontes e até dados concretos. Portanto, justifica-se, nesse momento, uma
fundamentação tão “básica”.
É de conhecimento geral que a língua só existe por
causa do falante. É ele, com seus usos, que determina as transformações em uma
língua; transformações essas que podem ser aceitas ou não.
E foram os falantes que decidiram (talvez até
inconscientemente) transformar o substantivo sobrecomum bebê (o bebê
masculino/o bebê feminino) em substantivo comum de dois gêneros (o bebê/a
bebê).
Sabe-se que, com relação à nossa língua, não se usa
mais as palavras “certo” nem “errado”. A contemporaneidade trouxe consigo a
possibilidade de uso e aceitação de maneiras (palavras, expressões) em
desacordo com as regras da gramática e o reconhecimento da questão das
Variações e Mudanças Linguísticas.
Entende-se aqui que o “fenômeno a bebê” é um típico
caso de variação que já se encontra bastante avançado, haja vista que os meios
de comunicação (que exercem grande influência sobre os falantes) está
utilizando-se dessa forma, conquistando, cada vez mais, adeptos (novos
usuários).
O mundo muda, as pessoas mudam, as línguas mudam. O
que acontece com o bebê/”a bebê” é um reflexo da mudança causada pelos próprios
falantes devido ao uso que fazem da língua. Essa variação é usada por várias
camadas sociais (pessoas de localidades, níveis culturais e sociais
diferentes). Por isso, esse uso não está sendo estereotipado nem discriminado.
Algo semelhante aconteceu com a palavra tapa, que de masculino (o tapa)
estava/está sendo usada como feminino (a tapa). A diferença é que apenas
pessoas sem escolaridade (ou com baixa escolaridade) faziam/fazem uso dessa
forma como feminino. Assim, ela é discriminatória e não alcançou os mesmos patamares
de uso “da bebê”.
Ainda em Bechara, encontra-se uma referência bastante
pertinente sobre a mudança de gênero:
Aproximações semânticas entre palavras
(sinônimos, antônimos), a influência da terminação, o contexto léxico em que a
palavra funciona, e a própria fantasia que moldura o universo do falante, tudo
isso representa alguns dos fatores que determinam a mudança do gênero
gramatical dos substantivos. Na variedade temporal da língua, do português
antigo ao contemporâneo, muitos substantivos passaram a ter gêneros diferentes,
alguns sem deixar vestígios, outros como mar, hoje, masculino, onde o antigo
gênero continua presente em preamar (prea = plena, cheia) e baixa-mar.
Já foram femininos fim, planeta, cometa, mapa, tigre, fantasma, entre muitos
outros; já foram usados como masculino: árvore, tribo, catástrofe, hipérbole,
linguagem, linhagem.[xvi]
Apesar de suas diferenciações conceituais, todas as
gramáticas citadas concordam com a existência de um tipo de substantivo que pertence exclusivamente ao gênero masculino ou feminino, fazendo diferenciação
ao termo a que se refere através dos elementos que poder lhe acompanhar. Crê-se
que essa questão já ficou bastante clara com os exemplos e conceitos
apresentados.
Apesar de a palavra bebê não ter sido citada como
exemplo em nenhuma das gramáticas estudadas, também é notório, com a observação
dos exemplos, que ela pertence “normativamente” ao grupo dos substantivos
sobrecomuns, mesmo que a oralidade a esteja tratando e usando como pertencente
a outro grupo (comum de dois gêneros).
Afinal, isso é bom ou ruim?
Não se pensa sobre isso. Não se pretende atribuir
adjetivos a esse uso. O objetivo é chamar a atenção para esse processo de
variação (que, não se pode afirmar, mas, tudo indica, resultará em mudança),
principalmente para essa geração que já encontrou essa forma como vigente e que
não tem conhecimento de que nem sempre foi assim.
Independente de essa variação realmente virar mudança
ou não está o fato de que tudo o que está acontecendo é consequência do desejo
do falante. É ele (repete-se), que através do uso que faz, determina “os rumos”
a serem seguidos pela língua. O importante é que variando apenas ou mudando
definitivamente não ocorrerão grandes implicações; já que quem usa será o
responsável pela escolha.
Referências:
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. Ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
BENEDICTA, Aparecida Costa dos Reis; GARCIA, Maria Cecília. Minimaual Compacto de Gramática: teoria e prática. 2. Ed. revi. e atual. São Paulo: Rideel, [?].
CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 4. ed. Revista pela Nova Ortografia. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.
TERRA, Ernani. Minigramática. 8. ed. São Paulo: Scipione, 2011.
TUFANO, Douglas. Estudos de Língua Portuguesa. São Paulo: Moderna, 1996.
[i] Mestre em Linguística Histórica, Especialista em
Estudos Linguísticos e Literários, Licenciada em Letras Vernáculas com Inglês,
Bacharel em Língua Inglesa e Bacharel Comunicação Social (Relações Públicas).
[ii] CUNHA, Antonio
Geraldo da. Dicionário Etimológico da
Língua Portuguesa. 4. ed. Revista pela Nova Ortografia. Rio de Janeiro:
Lexikon, 2010, p. 84.
[iii] BECHARA, Evanildo.
Moderna Gramática Portuguesa. 37. Ed.
ver. e ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005, p. 113.
[iv] TUFANO, Douglas. Estudos de Língua
Portuguesa. São Paulo: Moderna, 1996, p. 46.
[v] TUFANO,
p. 46.
[vi] TUFANO, p. 48.
[vii]TUFANO, p. 49.
[viii] BENEDICTA,
Aparecida Costa dos Reis; GARCIA, Maria Cecília. Minimaual Compacto de Gramática: teoria e prática. 2. ed. revi. e
atual. São Paulo: Rideel, [?].
[ix] BENEDICTA
e GARCIA, p. 109.
[x] TERRA, Ernani. Minigramática. 8. ed. São Paulo:
Scipione, 2011, p. 74.
[xi] TERRA, p. 74.
[xii] BECHARA,
p. 112.
[xiii] BECHARA, p. 113.
[xiv] BECHARA,
p. 113.
[xv] PERINI, Mario
Alberto. Gramática Descritiva do
Português. 4. Ed. São Paulo: Ática, 2009, p. 77.
[xvi] ALI, Manuel Said. Gramática
Histórica da Língua Portuguesa. 2. ed. São Paulo: Melhoramentos, [1931].
Apud BECHARA, p. 113 – 114.
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